Rebenta a bolha!








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Quando andava na escola era péssima a jogar às escondidas. Infelizmente, era um dos jogos favoritos da minha turma. E eu acreditei que até ir para a “escola dos crescidos”, se me esforçasse muito, seria boa no jogo. A verdade é que até me escondia bem, cabia em qualquer reentrância da escola velhinha onde passei os quatros anos da primária. No escorrega do infantário onde não me proibiram de entrar por ser tão pequena quanto os seus assíduos utentes. Atrás da oliveira que já lá estava quando o meu pai brincava no mesmo pátio… Mas quando me encontravam eu não tinha sequer tempo de chegar ao posto do guardião do jogo. As minhas pernas curtas em comparação com os meus adversários deixavam-me em desvantagem durante aquela meia hora de brincadeira. Mal soava a campainha que nos libertava das aulas para o recreio lá estava eu, após uma ou duas rondas atrás da oliveira ou no escorrega, à procura dos meus amigos. Sendo eu agora a responsável por desvendar os esconderijos, o problema mantinha-se: conhecia a escola como a palma da minha mão, encontrava-os todos, mas na hora da corrida ficava sempre para trás. Pior ainda, havia sempre um esperto que me deixava intervalos inteiros à sua procura. Normalmente, escondia consigo a minha última esperança de ganhar o jogo e voltar à minha oliveira. Já cansada de procurar, e saberá a oliveira o quanto eu odiava aquele jogo, gritava: Rebenta a bolha!

Hoje já não jogo às escondidas. Um dos pontos altos de ser adulta, sinceramente. Mas rebentar a bolha continua a ser uma expressão que me deixa inquieta. Não há dúvidas que há uma bolha imobiliária a crescer mesmo debaixo dos nossos tetos, ou da falta deles. E a única certeza que ela nos dá é que arrebentará. À direita apressam-se a virar os netos contra os avós. Querem convencer-nos de que se trata de um problema geracional, que é por causa daqueles que com o seu trabalho conseguiram aceder ao direito de ter uma casa que hoje os que iniciam a sua vida ativa não o conseguem. Que é graças às rendas antigas[1] que há poucas casas disponíveis a preços acessíveis. Uma mentira contada muitas vezes que não se torna verdade. Foi essa a narrativa que escolheu a vereadora da Habitação e das Obras Municipais da Câmara Municipal de Lisboa, Filipa Roseta[2]. A sua inação e narrativa de culpabilização não foi criada por si, é muito maior que uma mera vereadora. Mas não deixa de ser curioso que a responsável pela habitação da capital do pais denuncie o que está à vista de todos: o modelo económico do seu partido, PSD, depende da especulação imobiliária. Dela depende a Câmara que arrecada o IMT; dela depende o Governo que vê o PIB insuflado pelos preços exagerados deste direito básico; dela dependem as imobiliárias que a vêem como o garante de um lucro certo.

À custa deste modelo mata-se a esperança e uma vida digna de um povo. Os jovens de hoje não têm qualquer resquício de expectativa e esta forma de vida, este sistema, colonizou de forma hegemónica os horizontes do pensável[3]. Esta forma selvagem de exploração da vida de quem vive do seu trabalho normalizou-se de tal forma, colonizou a vida onírica das pessoas é de tal forma dado como adquirido que não é digno de ser comentado, nem, muito menos, de serem discutidas alternativas. Baixamos coletivamente as expectativas, pois esse é o preço a pagar por viver nesta prosperidade que é a proteção da guerra, dos mil perigos e inseguranças que as percepções ditam e ao totalitarismo. Por tudo isso devemos aceitar as vidas estafadas que nos esperam, a falta de casa onde morar, onde viver e sonhar. Ao mesmo tempo temos de nos esforçar mais, trabalhar mais, investir o que não temos em negócios e moedas especulativas de quem tudo tem. Porque se não conseguem sair das casas dos pais, em que por vezes também lá moram os avós. Se vivem numa casa sobrelotada[4]. Se moram num quarto sem janelas. Se a renda esmaga os salários. A culpa, caros preguiçosos e preguiçosas, claro: é vossa.

O problema é que a mentira pega. A transformação do lar, da casa, hoje apenas “propriedade” em ativo financeiro desmascara o parasita abstrato do capital. Este vampiro insaciável e criador de mortos-vivos. Anos de falta de vontade política, de modelos económicos que procuram o crescimento da seta no gráfico à custa da vida das pessoas. Medidas ineficazes como a redução do IMT para jovens, que apenas beneficiam quem já consegue comprar casa. Ou a controversa Lei dos Solos, que apenas serve os interesses instalados, potencia a corrupção e a especulação. Mas a culpa é nossa. O PS e o PSD, responsáveis pela situação que nos desespera, são os nossos servos: o miserável dos serviços que nos prestam é lavar a nossa libido e reapresentá-la, obsequiosamente, diante de nós os nossos desejos renegados como se nada tivessem a ver com tudo isto.

Se antes tinha de correr mais rápido, esforçar-me mais para ganhar o jogo das escondidas. Hoje, a direita diz à minha geração que tem de trabalhar mais, que tem de se esforçar mais. O problema continua a ser o mesmo: há quem tenha nascido com pernas maiores, hoje vejo que há quem tenha nascido com bolsos maiores. A corrida já tem vencedor ainda antes de entrarmos na escola. A oliveira lá continuará e o sonho de uma geração permanece naquela frase: Rebenta a bolha!


[1] Rendas relativas a contratos celebrados antes de 1 de Janeiro de 1980, que se encontravam congeladas e que passaram a ser corrigidas de forma extraordinária todos os anos.

[2] Discurso de Filipa Roseta no âmbito do evento Housing 4Z, 14 de fevereiro de 2025, no Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa.

[3] Fisher, Mark. 2014.Realismo Capitalista. VS Editor. p. 21.

[4] Relvas, Rafaela. 2024, 15 de março. Cada vez mais pessoas vivem em casas sobrelotadas, com humidade, pouca luz natural ou sem saneamento. Público.

https://www.publico.pt/2024/03/15/economia/noticia/pessoas-vivem-casas-sobrelotadas-humidade-luz-natural-saneamento-2083723