Reggaeton de intervenção








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Este artigo não tem por base qualquer tipo de conhecimento prévio sobre música, estudos do som ou qualquer resquício de entendimento sobre a prática de fazer arte através da junção de barulhos, ritmos e, por vezes, vozes. É somente uma reflexão pessoal, do ponto de vista do utilizador que procura, reconhecendo as suas limitações e insignificâncias, dar sentido aos tempos mortos do seu dia a dia através da música.

Estas linhas são sobre os talhes melódicos da percussão caribenha do bongo e dos cordofones como o cuatro, que agitam o sangue dos corpos gelados pelas manhãs de janeiro. Estes ritmos são a identidade inconfundível do novo álbum do Bad Bunny e de Porto Rico. Este álbum é um grito polvoroso de revolta contra o neocolonialismo dos Estados Unidos da América (EUA) no dialeto “puertorriqueño” harmonizado por batidas de reggaeton.

Este álbum surge de um contexto de agravamento das ocupações promovidas pelos EUA e pelas corporações norte-americanas com interesses especulativos no território antilhano.

No entanto, a investida colonial dos norte-americanos não é uma novidade isolada na história de Porto Rico. Esta ilha das Caraíbas, como tantas outras, na sua história contemporânea, esteve sempre sob o domínio de alguma potência colonial. Outrora, como conta Galeano (1971)[1], foi a burguesia espanhola que ocupou as Antilhas em busca da extração do “ouro branco”, que aprisionou à monocultura da cana-de-açúcar os territórios e condenou à pobreza as populações.

Em 1898, Porto Rico passou para o domínio dos EUA[2], e o colonialismo continuou a martirizar aquele povo, que parecia condenado a uma maldição inquebrável. Ao longo do século XX, alguns protestos e movimentos independentistas surgiram, provocando uma manobra por parte do colonizador, que concedeu o estatuto de Estado Livre Associado não soberano. Esta condição perdura até hoje

Em 2022, o músico porto-riquenho, Bad Bunny, lançou um álbum chamado “Un Verano Sin Ti”. Poderia ser um álbum normal que fala de amor, desgostos e traições com batidas de um reggaeton qualquer, mas todas as canções narravam alegorias sobre a condição colonial que condena Porto Rico. É no vídeo oficial de uma das músicas do álbum, “El Apagón”, que Bad Bunny denuncia francamente o projeto neocolonial norte-americano, através de um documentário de mais de 20 minutos.

No documentário “El Apagón – Aquí Vive Gente”, os testemunhos provocam angústia e raiva por demonstrarem como a ação colonial é uma apropriação rápida dos recursos e do espaço das pessoas nativas. É uma atuação rápida, que avança sobre os mais pobres e acaba por dominar integralmente todos os lugares da pátria colonizada. “El Apagón”, o nome da música, evoca a privatização da eletricidade em Porto Rico. Desde sempre que os apagões ocorrem com alguma frequência na ilha. A solução do governo fantoche foi privatizar a eletricidade em favor de empresa norte-americana num negócio que encheu a barriga do guloso sistema imperialista e corporativista.

Ao longo do documentário, a música que o acompanha recorda-nos da identidade latina fundida com a cultura dos povos africanos escravizados das Caraíbas, que ficaram cimentadas nos hábitos, costumes e nas tradições dos porto-riquenhos.

Neste território ocupado, onde outrora viviam os trabalhadores escravizados das plantações de cana-de-açúcar vivem agora os milionários norte-americanos que constroem mansões e resorts nos lugares onde antes existiam escolas e habitações públicas. Para proteger a propriedade agora privatizada, erguem fortalezas ao seu redor que negam o acesso aos pobres nativos cada vez mais miseráveis e invisíveis. Quando estes teimam em tentar sair da invisibilidade, “o interlocutor válido e institucional” do estado, “o porta-voz do colono e do regime de opressão” (Fanon, 1961[3]) surge de cara tapada e de arma de fogo na mão para restabelecer a ordem. São suprimidos da sua pátria apesar de gritarem “Yo no me quiero ir de aquí”[4].

No álbum de 2025, “Debí Tirar Más Fotos”, Bad Bunny dedica toda a estética sonora e visual a Porto Rico. Este álbum vem reforçar a posição do artista Benito[5], como um ativista contra a ocupação norte-americana e a intensificação das políticas que atraem milionários da Califórnia a usufruir das praias paradisíacas das Caraíbas, tal como da “Ley 22” que isenta de impostos todos os estrangeiros que por lá se fixarem. É um artifício comum aos estados imperialistas, já o vimos nas ocupações ilegais na Cisjordânia (Palestina) que o estado israelita patrocina e incentiva.

 “Debí Tirar Más Fotos” é uma homenagem aos povos das Caraíbas e à sua cultura, à cultura dos pobres e dos explorados que dançam o dembow e manejam o cuatro de onde saem as melodias tórridas e contagiantes que escutamos nos instrumentais de Bad Bunny.

Numa curta-metragem realizada no contexto do novo álbum, a denúncia à descaracterização de Porto Rico é reveladora dos efeitos nefastos da atividade turística na região. Numa das cenas do vídeo, dois porto-riquenhos cruzam-se numa padaria gentrificada, onde um pergunta ao outro: “¿seguimos aquí?”. Porque naquela pátria, condenada a não poder sê-lo de verdade, os pobres, os negros, os filhos e netos das pessoas escravizadas pelos espanhóis e espoliadas pelos norte-americanos são apagadas das ruas, avenidas e praias. Bad Bunny reafirma que:


Quieren quitarme el río y también la playa

Quieren el barrio mío y que abuelita se vaya

No, no suelte’ la bandera ni olvide’ el lelolai

Que no quiero que hagan contigo lo que le pasó a Hawái[6]


É ao som do reggaeton de intervenção que, enquanto bailam, os porto-riquenhos reivindicam as suas praias, o seu mar, o rum e o café. Reivindicam a pátria que nunca tiveram. Pleiteiam pela sua independência até hoje negada pela concupiscência da burguesia, tanto a estrangeira que corrompe, quanto a nativa que se deixa corromper. Nem seria possível acontecer doutra forma já que o (neo)colonialismo é uma máscara ostentada pelo capitalismo (Fanon, 1961). Ainda assim, aqui vive gente! E contra a ofensiva colonial financiada pelos interesses económicos da burguesia internacional, cabe aos oprimidos de todo o mundo assumir essa solidariedade e lutar pelo direito à terra, ao mar e à música.


[1] Galeano, E. (2010). As veias abertas da América Latina (S. Faraco, Trad.). L&PM Editores. (Obra original publicada em 1971)

[2] Este acontecimento foi resultado da derrota espanhola na Guerra Hispano-americana de 1898, uma guerra entre duas potências coloniais que disputavam a hegemonia da região das Antilhas.

[3] Fanon, F. (2023). Os condenados da terra (A. Massano, Trad.). Livraria Letra Livre. (Trabalho original publicado em 1961).

[4] Música de Bad Bunny. (2022). El Apagón [Música]. No álbum Un Verano Sin Ti.

[5] Benito Antonio é o nome civil de Bad Bunny.

[6] Música de Bad Bunny. (2025). LO QUE LE PASÓ A HAWAii [Música]. No álbum Debí Tirar Más Fotos.