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A máxima “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades” tornou-se um chavão universal, mas, quando aplicada a Donald Trump, parece ter sofrido uma metamorfose peculiar: com grandes poderes vêm grandes devaneios. Se há algo que a história recente nos ensinou é que Trump governa como vive – à base do impulso, da provocação e da certeza de que a controvérsia é, em si mesma, uma estratégia política.
Antes mesmo de tomar posse para o seu segundo mandato, a 20 de janeiro de 2025, já o mundo previa uma presidência tumultuosa. A relação entre os Estados Unidos e a América Latina, historicamente marcada por um jogo ambíguo entre proteção e domínio, voltou a sofrer abalos sísmicos. Se a Doutrina Monroe, em 1823, proclamava “a América para os americanos”, na prática, traduziu-se numa ingerência constante do gigante do Norte nos destinos do continente. Trump, com a sua retórica belicista e uma política externa mais baseada na imposição do que na cooperação, reavivou velhos ressentimentos.
Desde a campanha eleitoral que Trump encontrou, nos imigrantes, um bode expiatório conveniente. O seu discurso, recheado de insinuações xenófobas e teorias infundadas, atingiu o cúmulo quando acusou, sem qualquer base factual, migrantes haitianos de “roubarem e comerem animais domésticos”[1] em Springfield, Ohio. O exagero grotesco não é uma novidade na sua retórica, mas, desta vez, a transição do discurso para a ação foi rápida. A sua primeira semana no cargo ficou marcada por operações agressivas de deportação, desencadeando uma crise diplomática com a Colômbia. Gustavo Petro, presidente colombiano, recusou a aterragem de voos com deportados algemados, provocando um frenesi trumpista e ameaças de sanções tarifárias. O impasse foi resolvido com uma promessa de “repatriação digna”, mas não sem um espetáculo de provocações entre os chefes de Estado nas redes sociais.
No entanto, Trump não se limitou à Colômbia. O México, parceiro estratégico e vizinho direto, foi alvo de novas ameaças. Além de declarar a imigração ilegal uma “emergência nacional”, Trump decidiu desafiar não só a diplomacia, mas também a geografia: ainda antes da sua tomada de posse anunciou a intenção de renomear o Golfo do México como “Golfo da América”[2]. Se a provocação não bastasse, ameaçou ainda com tarifas de 25% sobre as importações mexicanas, caso o governo de Claudia Sheinbaum não endurecesse as medidas contra a migração ilegal e o tráfico de drogas. A resposta mexicana foi firme: a soberania do país não seria moeda de troca.
O Brasil, por sua vez, não escapou às investidas trumpistas. A suspensão do financiamento norte-americano à Organização Internacional para as Migrações comprometeu a assistência a migrantes venezuelanos no território brasileiro. Questionado sobre o futuro das relações com o Brasil, Trump brindou os jornalistas com uma resposta que condensava a sua visão sobre a América Latina: “Eles precisam de nós muito mais do que nós precisamos deles. Não precisamos deles. Eles precisam de nós. Todos precisam de nós.”[3] Um resumo perfeito da sua diplomacia: unilateral, arrogante e, acima de tudo, desprovida de qualquer vestígio de parceria.
Perante esta ofensiva, a resposta latino-americana não precisa de se limitar à indignação. A ascensão de governos progressistas na região permite articular estratégias de resistência coordenadas. O fortalecimento de blocos como a CELAC e o Mercosul pode reduzir a dependência comercial da América Latina dos Estados Unidos, diversificando parcerias com potências como a China e a União Europeia. O Brasil, sob uma liderança ainda mais assertiva, pode reforçar o protagonismo regional, promovendo um novo paradigma de cooperação Sul-Sul. A nacionalização de setores estratégicos e o investimento em cadeias produtivas regionais são passos fundamentais para diminuir a vulnerabilidade às potenciais sanções de Washington. Mais do que resistir, a América Latina pode transformar este momento numa oportunidade histórica para redefinir o seu papel global, afinal, o continente possui vastos recursos naturais, um mercado consumidor em crescimento e uma capacidade produtiva que pode ser impulsionada por políticas industriais soberanas.
No seu desejo incessante de redesenhar as fronteiras políticas e consolidar a hegemonia norte-americana, Trump esquece que a América Latina não é um simples tabuleiro de xadrez onde Washington faz as jogadas e os restantes acatam as regras. Ao ameaçar soberanias, impor tarifas e cortar ajudas, Trump não desafia apenas a geografia – desafia a dignidade de povos que, há séculos, se reinventam perante adversidades.
[1] Levine, Sam. 2024. “‘They’ve Destroyed the Place’: Trump Repeats Racist, Anti-Immigrant Lies.” The Guardian, September 13, 2024. https://www.theguardian.com/us-news/2024/sep/13/trump-repeats-lies-haitian-immigrants.
[2] Rinaldi, Olivia, and Caroline Linton. 2025. “Trump Signs Executive Order to Rename Gulf of Mexico, Denali.” CBS News, January 21, 2025. https://www.cbsnews.com/news/trump-rename-gulf-of-mexico-denali/.
[3] Redação G1. 2025. “‘Eles Precisam de Nós Mais Do Que Precisamos Deles’, Diz Trump Sobre Brasil e América Latina.” G1, January 20, 2025. https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/01/20/eles-precisam-de-nos-mais-do-que-precisamos-deles-diz-trump-sobre-brasil-e-america-latina.ghtml.