Passado e abusos da memória no caso do Holocausto








A 27 de janeiro de 1945, o campo de concentração nazi em Auschwitz é libertado pelo Exército Vermelho, que acabou por chegar primeiro do que as tropas dos restantes países Aliados. Apesar desse episódio ser consensualmente assumido como um facto histórico indiscutível (inclusive registado documental e fotograficamente), a memória não deixa de ser um campo de batalha e um importante instrumento de produção de discursos oficiais por parte das classes dominantes.

No 80.º aniversário da libertação de Auschwitz, o revisionismo histórico foi o prato do dia, servido em casa de milhões de telespectadores que seguiram o comentário político mainstream. Por motivos académicos, tive oportunidade de visitar Auschwitz e Birkenau, na Polónia. Foi ali, no maior e mais horrendo campo de concentração nazi que foram executadas um milhão e cem mil pessoas, entre judeus (na esmagadora maioria), comunistas, socialistas, anarquistas e outros opositores ao regime, pessoas com deficiência, ciganos, homossexuais, negros. Gente proveniente de vários cantos da Europa, fossem crianças ou adultos, homens ou mulheres.

O cientista político e ativista social Finkelstein escreveu que “o Holocausto é uma representação ideológica do holocausto nazi” (Finkelstein, 2001. p. 11). O que nos está a querer dizer este cientista político, filho de sobreviventes do gueto de Varsóvia com tal frase? Em suma, que o aproveitamento do trauma da solução final de Hitler por parte do Estado de Israel e dos Estados Unidos da América através de mecanismos de propaganda poderosos servem, acima de tudo, para evitar críticas da atualidade (Finkelstein, 2001. p. 49). No mesmo sentido, o historiador Enzo Traverso alerta que “o risco não é o de esquecer a Shoah, mas o de fazer um mau uso da sua memória, de embalsamá-la, de a fechar nos museus e de neutralizar o potencial crítico, ou pior de a submeter a um uso apologético da actual ordem mundial” (Traverso, 2012, p. 128).

O que se passa hoje com a invocação do Holocausto por parte de uma parte considerável da nova extrema-direita é um abuso sobre a memória dos que ficaram pelo caminho e de todos os sobreviventes desse genocídio. Em janeiro passado, na televisão portuguesa, foi apresentada a teoria de que o maior campo de concentração havia sido libertado por ucranianos (e não pelo Exército Vermelho), e ainda a visão de que o mais assustador no caso do nazismo se prende com a enorme inteligência dos seus principais dirigentes, e não na política do ódio e da morte que o nazismo representou na história da Humanidade.

Toda esta revisão histórica, disfarçada de comentário político “especializado” não é mais do que um aproveitamento político descarado, uma artimanha para apoiar discursos que justifiquem as atuais decisões do governo israelita e da administração norte-americana, por um lado na destruição de Gaza e o apagamento do povo palestiniano, por outro na utilização da Ucrânia enquanto escudo de primeira linha contra o perigo de Putin (como se a proximidade entre a oligarquia russa e Trump, Meloni ou Bolsonaro fosse uma miragem).

Em 2003, Agata Siwek produziu uma exposição na galeria de arte Guardianenhof em Den Bosch, na Holanda provocatória que exaltou os ânimos de muita gente. A ideia era mesmo essa. Em Yolocaust[1], a artista polaca expôs um conjunto de objetos de memória dos campos de concentração desde ímanes de frigorífico para crematórios, a porta-chaves “Arbeit Macht Frei” ou mesmo peluches de crianças e camisas às riscas apresentando-os como souvenirs ou produtos comercializáveis. A exposição tornou-se um exemplo bizarro do que, poucos anos depois, virou moda. Em 2024, o jornal Público[2] dava conta de uma nova trend em Auschwitz: tirar selfies com o campo de concentração como pano de fundo.

É urgente devolver a história do Holocausto, em primeiro lugar, aos seus sobreviventes, respeitando a sua dor e combatendo todo o tipo de abusos. Em segundo lugar, resgatar a temática enquanto objeto de estudo não comercializado, mas sim ensinado às novas gerações, sustentado em critérios de análise objetivos e críticos sobre esse período histórico. Foi justamente o caminho de turistificação dos lugares de memória do Holocausto que hoje é tão fácil distorcer os factos e a história. A linha entre a mercantilização do passado e o apagamento da histórica é demasiado ténue e parece estar a ser definitivamente apagada pela extrema-direita.


[1] https://www.bridgemanimages.com/en/siwek/a-small-puppet-dressed-in-concentration-camp-clothes-by-polish-artist-agata-siwek-is-pictured-on-sal/photograph/asset/7627187

[2] https://www.publico.pt/2024/03/23/p3/noticia/problema-humilhar-pessoas-tirarem-selfies-auschwitz-2084437


Referências Bibliográficas:

G. Finkelstein, Norman. (2001). A Indústria do Holocausto. Lisboa: Antígona.

Traverso, Enzo. (2012). O Passado: modos de usar. Lisboa: Tigre de Papel.