Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira
Em 2017, numa partida amigável que opôs o francês PSG ao clube tunisino Club Africain, os adeptos do clube do norte de África exibiram nas bancadas uma enorme faixa com a mensagem: “created by poor stolen by rich”. Esta mensagem foi dirigida ao presidente do PSG, Nasser Al-Khelaïfi, que também é o CEO de um fundo de investimento relacionado com o estado Qatarí, Qatar Sports Investment, que detém os direitos desportivos e económicos do clube da capital francesa.
A mensagem foi amplamente partilhada nas redes sociais na época e ressurgiu em 2023 quando uma nova ofensiva protagonizada por alguns dos maiores clubes da Europa para a criação de uma SuperLiga Europeia independente da UEFA e da FIFA ressuscitou. O Barcelona e o Real Madrid foram alguns dos clubes que receberam essa possibilidade com maior entusiasmo e apoiaram desde o início a proposta da A22 Sports Management, principal promotora na nova prova independente.
A frase que marcou o estádio do Club Africain naquele dia de janeiro de 2017 reivindicava um direito, há muitas décadas negado, de devolução do futebol ao povo trabalhador. A classe trabalhadora que, com uma das mais belas fintas alguma vez realizadas neste jogo, disputou a “patente social” do jogo à burguesia industrial britânica do final do século XIX. Por esta razão, a frase estendida nas arquibancadas do Estádio Olímpico de Radés estava errada, os pobres não criaram o jogo, mas tornaram o futebol num confronto de classes. Os ricos reprivatizaram o jogo quando este passou a ser lucrativo. O futebol moderno é a capitalização da paixão dos pobres pelo jogo. Este jogo que durante várias décadas foi apropriado pelo povo e reinventado pelos latinoamericanos que juntaram à rigidez objetiva e à brutalidade britânica um bailado fascinante e harmonioso que só os povos do sul das américas sabem dançar.
A origem do futebol é importante para entendermos as transformações sociais inerentes à sua prática. É certo que o jogo é ainda uma prática democrática, basta-nos uma bola e criatividade para imaginar as balizas e as linhas brancas que delineiam o campo. Todavia, o encanto das crianças que correm nos recreios das escolas atrás de uma bola é o limite da socialização do jogo. Nos patamares do futebol profissional, os tecnocratas que nunca pontapearam uma bola, elitizaram-no. A elitização não se reflete apenas no acesso aos estádios ou nas finais nacionais disputadas num qualquer país governado por “petrocratas”. Esse distanciamento do adepto ao jogo é premeditado, é a construção de uma ideia que transforma os atletas e treinadores em superestrelas inatingíveis. A capitalização do sonho e a mercantilização de um ser humano numa escravidão legal e milionária. O escritor Eduardo Galeano escreveu, em 2010, que “este mundo é tão absurdo que até tem escravos milionários”. Não poderia estar mais de acordo.
Na Inglaterra industrial os burgueses, numa primeira abordagem, opuseram-se à profissionalização do futebol com receio de perder a sua hegemonia. As suas pretensões de preservar o amadorismo desvaneceu quando o jogo dos ricos praticado pelos pobres, muitos deles operários, começou a atrair milhares de adeptos (hoje milhões) capazes de tudo para assistir a uma partida. Rapidamente, é abandonada uma certa natureza romântica, em substituição da sua organização económica onde o praticante passa a ser uma mercadoria. O jogador de futebol, com a profissionalização, despiu a farda de operário e trajou a tempo inteiro com o uniforme do clube. Contudo, a sua força de trabalho permaneceu como ativo manuseável por uns quantos empresários, mas o mesmo já não corria o risco de ficar com um membro encravado na roldana da máquina. Em contrapartida vivia com a angústia de ficar maltratado com uma entrada mal intencionada e ficar destinado a uma vida de miséria onde nem a bola nem a fábrica lhe podiam dar sustento. Com a criação das superestrelas o futebol deixou de ser o centro e a extravagância associada ao estilo de vida milionário assumiu esse destaque.
A sua profissionalização, primeiro na Europa[1] e mais tarde remetido para a América Latina, é um processo político e económico onde a burguesia resgata o jogo para a esfera do mercado. O fetichismo da mercadoria adaptou-se à realidade do futebol e converteu o jogador num bem transitável e gerador de mais-valia.
A FIFA desde a sua origem que monopolizou todas as decisões sobre o mundo do futebol, manipulou cargos administrativos, influenciou sorteios de jogos e sedes de competições mundiais para maximizar lucros e atrapalhou sempre qualquer possibilidade de organização popular e democrática dos clubes (com exceção do St. Pauli da Alemanha). Quando jogadores como Sócrates e Maradona surgiam em denúncia do embuste da corrupta FIFA a mesma apresentava as suas retaliações através de jogos de bastidores.
A curta Democracia Corinthiana que fez tremer a ditadura militar Brasileira, provou também no mundo do futebol um tumulto. Neste mundo onde quem rege as leis é o lucro, o Corinthians mostrou que é possível um clube ser autogerido, onde todos os trabalhadores são vistos como tal e têm a mesma palavra a dizer sobre o seu futuro desportivo, financeiro e político. Foram dois anos rapidamente desfeitos com início na derrota do movimento “Diretas Já”[2], onde Doutor Sócrates, interveniente ativo pela democratização do Brasil, é abalado pela derrota política e no seguimento da mesma forçou a saída para a Fiorentina (Itália). O clube brasileiro onde jogava Sócrates ainda tentou impedir que assim fosse mas no seu “Grito do Ipiranga” protestou, “Me respeitem! Eu não sou uma mercadoria!”.
Nos Mundiais de 1986 e 1994, respectivamente no México e nos Estados Unidos da América, as partidas eram disputadas no pico do calor para serem transmitidas em horário nobre pelas televisões europeias. Maradona, denunciou essa perversão gananciosa da FIFA. Não era a primeira nem seria a última vez que Maradona denunciava a oligarquia do futebol, mas as consequências para o mesmo foram devastadoras. O rebelde argentino acabou suspenso do mundial 94 por utilização de efedrina. Nesse mundial um jogador da seleção do estado espanhol também havia testado positivo para essa substância mas apenas foi suspenso por um jogo ao contrário de Maradona que ficou fora do resto da prova.[3]
A história do futebol é carregada por momentos de confronto entre classes, mas é notório que a circulação de milhares de milhões de dólares é um bom prenúncio de como funciona a máquina do futebol mundial. Os bastidores do futebol são ricos em assédio, corrupção e abusos de poder. Todos esses interesses coligados com as piores ditaduras do mundo, como é o caso da Rússia (anfitriã do Mundial 2018) e do Qatar, onde se realizou o Mundial 2022 ou com Marrocos e a Arábia Saudita, onde se realizarão jogos dos Mundiais de 2030 e 2034, respetivamente. A cada ano, os tecnocratas de Zurique concebem novas competições internacionais e alteram formatos que vão aumentar significativamente o número de jogos e consequentemente o dinheiro envolvido. O novo formato do Mundial de Clubes é a prova disso mesmo. Ao mesmo tempo que é alargada uma competição que antes era disputada apenas pelos campeões continentais de cada uma das confederações para um total de 32 equipas de todo o mundo, a UEFA alterou o formato das competições europeias com vista a ampliar o número de jogos disputados. O Mundial de seleções da FIFA sofrerá também alterações no formato, passando de 32 seleções para 40 e assim garantem mais umas dezenas de jogos, mais umas centenas de transmissões televisivas e muitos milhões de dólares para os cofres dos mesmos do costume. É a hegemonia da FIFA enquanto instituição capitalista que através do futebol pretende legitimar a acumulação de capital enquanto branqueia ditaduras sanguinárias desde que as mesmas sejam suas leais companheiras de negócios lucrativos. O jogo que vemos hoje nos estádios ou pelas televisões não é mais futebol, é o desporto de Havelange. Enquanto isso, o futebol real resiste nas ruas onde a essência ainda é o jogo pelo jogo.
[1] Fergus Suter foi o primeiro jogador profissional de futebol. Antes de se profissionalizar jogador de futebol, Suter trabalhava como operário fabril e jogava futebol na equipa da fábrica.
[2] Movimento popular no Brasil que exigia uma eleição direta para o cargo de presidente da República no Brasil. Foi um movimento de resistência à ditadura militar e onde participou ativamente o jogador do Corinthians, Sócrates (1983-1984).
[3] Calderé, jogador espanhol, que também testou positivo para efedrina, foi suspenso por apenas um jogo. O médico da “roja” assumiu a responsabilidade, enquanto o médico da seleção Argentina recusou-se a fazê-lo.