Contra o medo, ser








Créditos

Father Nathan Monk

“Pessoas queer não crescem como elas mesmas; crescemos a interpretar uma versão de nós que sacrifica a autenticidade para minimizar a humilhação e o preconceito.”

– Alexandre Leon

Crescer queer é uma dança constante entre o que se sente e o que se mostra. Não se trata apenas de descobrir a própria identidade – trata-se de descobrir, antes disso, o que pode ser dito, feito ou mostrado sem provocar castigo, exclusão ou vergonha. Muitas crianças LGBTQI+ passam os primeiros anos da vida a testar versões de si mesmas, como se estivessem sempre a ensaiar um papel numa peça cujo guião é escrito por outros.

Esta adaptação não é natural, é uma resposta ao medo. E o medo é político. Desde cedo, aprendemos que há formas de existir mais perigosas que outras. E que a diferença, em vez de ser celebrada, é vigiada, censurada, ridicularizada. É neste ambiente que se molda a personalidade, não como expressão, mas como mecanismo de sobrevivência.

Essa realidade individual está intimamente ligada a um contexto coletivo mais amplo. Quando a extrema-direita cresce — e está a crescer —, ela cresce sobre os corpos que aprendeu a desprezar. Mulheres, pessoas LGBTQI+, pessoas racializadas, migrantes: tornam-se os alvos prioritários, não por acaso, mas por cálculo. Atacar grupos subalternizados e minorias serve para mobilizar ódio, desviar atenções e consolidar poder.

Portugal, durante muito tempo, foi apresentado como um exemplo de progresso em direitos LGBTQI+. Mas a verdade é que, apesar de os direitos legais não terem recuado, essa narrativa está em declínio. A recente descida no ranking europeu da ILGA é um sinal claro de que os retrocessos não são hipotéticos — já estão a acontecer. E não se trata apenas de leis: trata-se de discursos, de representações, de como é percebido o direito à existência.

Por isso é que a infância importa. Porque quando se apaga, na prática, o direito de uma criança a ser quem é, está-se a preparar terreno para apagar, depois, esse mesmo direito em adultos. A violência política contra pessoas LGBTQI+ não começa no Parlamento, começa no recreio, no armário, no silêncio.

É por isso que não é exagero dizer que há uma guerra contra a liberdade — e que essa guerra começa nos detalhes. No questionamento da existência trans nas escolas, nas campanhas contra a educação sexual inclusiva, na tentativa de apagar a palavra “género” dos debates públicos. Tudo isso são formas de controlo, que vêm disfarçadas de “opiniões” ou “liberdade de expressão”, mas têm como alvo a autonomia das nossas vidas.

Quando uma criança LGBTQI+ sente que precisa de esconder quem é, o que está em jogo não é apenas a sua autoestima. É o seu direito a existir com dignidade. Quando o Estado falha em protegê-la, ou pior, alinha com discursos que a violentam, está a legitimar a marginalização como política de Estado.

Porque sim, a extrema-direita quer reverter direitos. Mas também quer redefinir o que é “normal”, o que é “aceitável”, o que é “possível”. O seu projeto é cultural e efetivo: quer reinstalar o medo como linguagem comum. E o medo, sabemos, é inimigo da solidariedade e da liberdade. O medo faz calar quem devia falar, faz recuar quem devia avançar.

Mas há uma memória que resiste. Uma memória feita de vozes que se afirmaram mesmo quando tudo as mandava calar. Uma história de coragem queer, de insubmissão trans, de afetos que escaparam às grades da norma. Cada vez que alguém ousa dizer “sou assim” — mesmo com a voz trémula —, abre-se uma fenda no edifício do ódio.

Defender os direitos das pessoas LGBTQI+ não é uma “pauta identitária”. É uma frente de luta contra o autoritarismo, contra o moralismo que mata, contra o projeto político que quer uma sociedade homogénea e obediente. Proteger as nossas crianças — todas elas, na sua diversidade — é proteger o futuro da democracia, é contribuir para quebrar o poder de quem se sustenta no ódio, é promover a vida e a libertação de uma ampla maioria de oprimidos e explorados.

Se queremos resistir ao avanço da extrema-direita, precisamos de começar por escutar aquelas vidas que sempre foram ensinadas a calar. Precisamos de manter viva a transformação da vergonha em orgulho, do medo em confronto, da solidão em comunidade.

Porque o contrário do armário não é só a visibilidade — é a liberdade.