Na próxima eleição, vira à esquerda








Às vezes, parece que o país entrou num carro sem travões e decidiu acelerar em direção ao abismo, só porque lhe disseram que era um qualquer atalho para o sucesso. O volante range, a estrada estreita, as placas avisam “Perigo, fascismo à frente”, “Perda de direitos a 500 metros”, mas há quem continue a sorrir, mão fora da janela, como se a queda fosse apenas uma aventura. E pior: há ainda quem se ofenda porque há quem queira tentar puxar o travão. 

Vivemos tempos que parecem de delírio coletivo. Pobres que parecem querer defender milionários, inquilinos a chorar pelos senhorios, precários a pedir cada vez menos Estado, menos Estado dos direitos sociais e mais Estado militar/repressivo (a velha história, trabalhadores a defender o capitalismo é como a barata a defender o chinelo). O mundo está virado do avesso e, em vez de nos revoltarmos coletivamente com a injustiça, aprendemos a chamá-la de “realidade”, como se fosse uma lei da natureza – “é assim”, “também… o que é que vamos fazer?”. Vivemos como se o mercado fosse deus e os lucros, parte dos seus mandamentos. 

Deram-nos a mão, fingiram ser nossos aliados, e conduziram-nos ao tal abismo. Disseram-nos que somos todos empreendedores, futuros ricos em pausa. E por isso, temos que nos portar bem, trabalhar muito sem nos queixarmos, ter mindset, pagar todas as dívidas e fazer sempre mais do que julgamos ser capazes – a recompensa chegará. Mentira. Enquanto nos empurram nesse caminho, quem tudo tem ganha ainda mais, os nossos pequenos passos, as horas extra de trabalho, as horas sem dormir fazem com que os passos deles sejam bem maiores. Não caminhamos todos com as mesmas pernas — e eles sabem disso.

Mas nada disto aconteceu por acaso. Foi preciso muito esforço para que os explorados passassem a identificar-se com os exploradores. Para que os oprimidos acreditassem que o problema são os outros pobres, os migrantes, os que “vivem de subsídios”. Esta é a mais eficaz das vitórias do neoliberalismo: a classe trabalhadora transformada numa espécie de guarda prisional de si própria.

Na alienação identificada por Marx, o trabalhador, sob o capitalismo, é separado do produto do seu trabalho, do ato produtivo como realização pessoal, e da sua própria humanidade. Provavelmente uma das consequências disso é o que podemos chamar alienação da empatia. O pobre que desconfia do pobre. O miserável que olha para o miserável e vê concorrência em vez de solidariedade. O vizinho que tem um pouco mais não é motivo de alegria, mas de ameaça. Os mesmos que nos agarraram a mão e nos conduziram ao abismo segredam-nos ao ouvido o seu feitiço simples e venenoso: “Tu estás mal porque alguém te roubou o que é teu”. Nunca dizem que foi o patrão. Dizem sempre que foi o refugiado. O pobre. A pessoa queer. A mulher que exigiu igualdade. É o truque mais antigo do mundo: dividir para reinar. 

Tudo isto é aceite como inevitável. Mas não é. Há propostas concretas que enfrentam esta lógica – como taxar os 0,5% dos super-ricos, que acumulam fortunas enquanto o resto conta moedas para pagar a renda. É o mínimo. É mais do que justo. Mas até isso parece um insulto a quem aprendeu a ter pena dos milionários. O mundo vendeu-lhes a falsa ideia de que também vão ser ricos e, por isso, mais dia, serão eles os taxados.

Virar à esquerda, neste contexto, é o ato mais lúcido e mais difícil. Porque implica travar. Implica reconhecer que o caminho que a maioria segue não nos serve. Que o nosso sucesso não pode ser construído sobre a miséria dos outros. Que não queremos viver em competição perpétua. Ser de esquerda é recusar este delírio coletivo. É querer uma vida digna para todos e para todas. É não permitir que um CEO ganhe quase 200 vezes mais que um trabalhador. 

Não é um gesto utópico – é um gesto de sobrevivência.  Por isso, na próxima eleição vira à esquerda.