Objeção ou Obstrução?

O acesso a Interrupção Voluntária da Gravidez

Desde 2007 que a Interrupção Voluntária da Gravidez, por decisão da mulher, é uma prática legal. No entanto, tem-se assistido cada vez mais ao aumento das dificuldades de acesso a este serviço de saúde, motivado maioritariamente pelo aumento de profissionais de saúde objetores de consciência. Acresce-se ainda, a falta de políticas públicas adequadas a colmatar as várias dificuldades que as mulheres enfrentam no acesso à saúde.

Em 1967, declarava a Organização Mundial de Saúde (OMS) que o aborto clandestino era um sério problema de saúde pública, numa altura em que entre 39% e 41% das mulheres de todo o mundo viviam em países com legislação restritiva face à Interrupção da Gravidez.

Em portugal, o caminho para a despenalização durou mais de vinte anos e só com o referendo de 2007 é que se conquistou a despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez. Representou um avanço significativo nos direitos reprodutivos e de autodeterminação das mulheres e das pessoas gestantes.

A aprovação do referendo decorre do esforço de várias Associações, Coletivos e Partidos Políticos. Durante os vários anos, estas realizaram diversas campanhas de modo a reduzir o estigma sobre quem decide interromper a gravidez, colocando no espaço público este grave problema de saúde que aflige dezenas de milhares de mulheres. 

Esta conquista introduziu avanços na lei e retirou do banco dos réus milhares de mulheres. Pelos mais diversos motivos, estas recorreram a Interrupção Voluntária da Gravidez, e com a despenalização foram evitados julgamentos e penas de prisão injustas. É importante ter ciente que a despenalização do aborto significou a redução da morte de mulheres pela prática do aborto clandestino.

Devemos relembrar que até 2008 o aborto clandestino era a terceira maior causa de morte das mulheres em portugal. Antes da despenalização, a Interrupção Voluntária da Gravidez era um crime punível com até três aos de prisão e entre 1998 e 2007 foram investigados 223 ‘’crimes de aborto’’.

Ao mesmo tempo que várias jovens crescem num tempo em que abortar já não é crime ou uma sentença de morte, veem o acesso à interrupção da gravidez cada vez mais dificultado.  A introdução nos códigos deontológicos, da ordem dos médicos e da ordem dos enfermeiros, do direito à objeção de consciência, que muitas vezes se aplica a qualquer ato relacionado com a Interrupção da Gravidez, representa um grave entrave.

O estatuto da ordem dos médicos que no seu art. 4º/1 reconhece e exige o respeito pelo direito à saúde de todas as pessoas cidadãs. No entanto, o estatuto deontológico dos médicos estabelece no art. 64º, que ‘’a interrupção do estado de gravidez, por decisão da mulher, pode ser proposta ao médico nos termos e prazos previstos na lei. O médico decide sobre a proposta, de acordo com os seus valores profissionais e a sua consciência’’.

Decorre do estatuto deontológico, a infantilização da decisão da mulher, que é referida como mera ‘’proposta’’, nomenclatura contrastante das restantes operações abordadas neste estatuto como decisões da pessoa.

Portugal é dos poucos países na europa em que a objeção de consciência esta legislada. O acesso a um aborto legal e seguro é então colocado em causa pelo exercício cada vez mais generalizado da objeção de consciência. A objeção tem vindo a funcionar como uma obstrução ao acesso à saúde por parte das mulheres e pessoas gestantes.

A obstrução ao acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez verifica-se logo a partida, com a não obrigatoriedade de registo dos profissionais de saúde objetores. Apoiado pela legislação em vigor que permite ainda que os médicos se oponham a quaisquer atos relativas ao aborto. Um sistema de saúde no qual os profissionais, por exemplo, se recusam a colher sangue para uma análise a uma mulher que pretenda interromper a gravidez, revela uma falha nos seus cuidados.

A objeção de consciência coloca os profissionais de saúde num papel de juízes morais do comportamento das mulheres e não de prestadores de cuidados. Colocar o debate no sentido de considerar a interrupção da gravidez por decisão da mulher como uma questão moral, permite que a lei seja influenciada pela moral individual e não pelo bem coletivo. Garantir a dignidade da pessoa humana (art. 1º CRP) passa por considerar a interrupção da gravidez como uma questão de saúde pública retirando o pendor moral e religioso que coloca em perigo a vida das mulheres.

O estado tem o dever de manter um sistema de saúde que não prive as mulheres do acesso efetivo aos seus direitos legalmente protegidos e que garanta as condições para os mesmos. Deve garantir a contratação de profissionais de saúde que não sejam objetores de consciência, e que se exija a declaração do mesmo por parte das direções hospitalares de modo a garantir os procedimentos necessários.

O acesso a interrupção da gravidez em segurança, é ainda uma luta dos nossos dias. Em 2015, a lei nº134/2015 estabeleceu taxas moderadoras para a interrupção voluntária da gravidez. Apesar de revogada em 2016, não deixou de representar uma tentativa de penalização para quem desejasse interromper a gravidez.

Por todo o mundo o direito ao aborto legal e seguro tem recuado. Nos estados unidos a revogação do roe v. wade significou a desproteção de muitas mulheres. Na europa, a polónia tem sido dos países que mais regride, tendo sido condenado inclusive pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Numa altura em que é aprovada a inclusão do direito ao aborto na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.

A despenalização da interrupção voluntária da gravidez deixou claro que o acesso ao aborto com segurança protege as mulheres. Desde 2007 que o número de morte pelo aborto clandestino tornou-se nulo e o próprio recurso a interrupção da gravidez tem vindo progressivamente a diminuir. A criminalização do aborto não diminui assim a sua prática, apenas a torna mais insegura para as mulheres.

Dezassete anos depois, é preciso voltar a olhar para a lei, impor restrições à objeção de consciência e alargar os prazos para a interrupção voluntária da gravidez. É preciso que este direito não seja apenas formal, mas que se materialize num acesso aos cuidados de saúde generalizado e seguro.