© Overwhelmed, de Marta Nunes
O modelo económico neoliberal a que a União Europeia habituou os povos europeus, com maior enfoque nos povos do sul, tem vindo a ser modificado à medida das necessidades dos senhores da guerra. As regras de contração orçamental, que estrangularam o investimento público desde a última grande crise do capitalismo, em 2008, estão hoje a ser desrespeitadas pelos seus principais promotores, como são exemplo a Alemanha, a Áustria e os Países Baixos[1]. Esse facto não significa que o aumento de gastos por parte dos Estados reflita uma melhoria de vida para a maioria da população nem tampouco uma correção no verdadeiro défice: a falta de investimento nos serviços públicos como a saúde, a educação e a ciência, a segurança social ou os transportes coletivos.
O atual estádio da economia política mundial, apesar do discurso (ainda) oficial de controlo orçamental a partir dos cortes no Estado Social, está a mover-se para uma realidade adaptada às circunstâncias, na qual as disputas imperialistas não se coadunam com o emagrecimento da capacidade de intervenção dos Estados. A prova desse esforço que as classes dominantes impuseram aos povos está bem espalhada no objetivo de alcançar 2% de investimento público anual na área da Defesa.
Em Portugal, o Primeiro-Ministro Luís Montenegro apressou-se no compromisso dessa meta, apesar de o Orçamento do Estado para 2025 não o contemplar[2]. Os países da periferia europeia, como é caso do nosso, terão acrescidas dificuldades em corresponder satisfatoriamente a este desígnio. O processo de desindustrialização levada a cabo desde a década de ‘80 impede, a curto prazo, uma requalificação de infraestruturas e mão de obra para a produção em série de equipamento bélico. No entanto, isso não significa que, nos próximos anos, a economia portuguesa não venha a sofrer significativas alterações, reenquadrando apoios públicos e comunitários para essa indústria.
A proposta já aprovada do Orçamento do Estado para 2025 prevê um corte no financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (F.C.T. IP) na ordem dos 70 M€[3]. O cadastro dos governos de direita é rico em cortes no investimento público. No caso da investigação científica, é um legado dividido com o Partido Socialista, e sempre aditivado com a precariedade enquanto regra e a semi-privatização do sistema enquanto norma. Porém, não é impossível que o índice de investimento em ciência e tecnologia se mantenha ou aumente. Porquê?
Há vários anos que a estratégia no investimento em ciência passa por uma paulatina transferência da esfera pública nacional, através da distribuição de fundos com a Fundação para a Ciência e a Tecnologia, para o setor privado. Esse movimento dá-se de duas formas: 1) a progressiva promiscuidade entre as Instituições de Ensino Superior (IES) com o setor privado, através de um modelo de “autonomia” que impossibilita qualquer fiscalização democrática pelo poder público e no seio das próprias IES pelos seus pares; 2) a contabilização de investimento em ciência e tecnologia a partir de um índice para o qual empresas privadas, mesmo que não invistam em conhecimento científico, participam nela através da compra de equipamentos de “ciência e tecnologia” ou projetos caracterizados como “inovação tecnológica”. Ou seja, o enquadramento da produção científica e tecnológica mudou através da alteração do seu financiamento, dos seus objetivos muito concretos na dinamização de um setor privado que pretende resultados práticos imediatos e utiliza o avanço tecnológico para esse efeitos e, com isso, dos seus atores também. Esvaziam-se os espaços de produção de ciência enquanto bem público e apoiam-se os setores produtivos privados, para os quais a própria Universidade é mobilizada a apoiar com a sua massa crítica e financiamento.
Tudo indica que o caminho para o cumprimento da meta de investimento em Defesa seguirá esse modelo de gestão do financiamento para este setor. As IES serão convidadas a participar nesse desígnio internacional e verão as linhas de financiamento competitivo para os seus projetos científicos cada vez mais enquadradas na produção e otimização de equipamentos e processos que possam vir a desempenhar um papel num mundo cada vez mais armado e belicista. Por sua vez, o setor privado ajustar-se-á[4], na mesma proporção, de forma a aplicar o mais rápido possível esse conhecimento acumulado que o esforço público garantiu através de Orçamentos do Estado e outros mecanismos como são os fundos competitivos da UE ou outros. O atual momento exige mais do que uma reivindicação, também justa, do aumento do financiamento para a Ciência. É preciso discutir em que moldes e para servir que interesses. A história da Humanidade está repleta de episódios de grande avanço tecnológico porque a guerra assim o exigiu. Para nós, que partilhamos um espaço de inspiração marxista, é nos exigida uma capacidade crítica acrescida, que não abandona a bandeira de uma investigação científica ao serviço da comunidade e do bem público, que responda aos desafios do presente, desde logo a necessidade para um efetivo combate às alterações climáticas numa transição socialmente justa, em contraponto à ciência como mercadoria da classe dominante.
[1]No final de novembro do corrente ano, a Comissão Europeia destacou negativamente estes três países, após ter analisado os respetivos orçamentos nacionais para 2025 de cada um. Em causa, está o incumprimento das metas do défice (fixado num máximo de 3% do PIB), baluarte da política económica de Bruxelas.
[2]DN/Lusa. 2024. Portugal vai aumentar investimento em defesa para 6 mil milhões de euros em 2029. Diário de Notícias, 10 de julho de 2024. https://www.dn.pt/8250813682/portugal-vai-aumentar-investimento-em-defesa-para-6-mil-milhoes-de-euros-em-2029/
[3]Ramalho, Tiago. 2024. “Governo corta 68 milhões de euros na verba da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Público, 4 de novembro de 2024. https://www.publico.pt/2024/11/04/ciencia/noticia/governo-corta-70-milhoes-euros-verba-fundacao-ciencia-tecnologia-2110485
[4]XXIV Governo. 2024. Primeiro-Ministro desafia empresas a investir na defesa. República Portuguesa. 8 de novembro de 2024. https://www.portugal.gov.pt/pt/gc24/comunicacao/noticia?i=primeiro-ministro-desafia-empresas-a-investir-na-defesa