Está em crise o sistema? Não é novidade este discurso populista que apregoa o fim das democracias liberais e a mensagem implícita que adverte para a necessidade de novos tempos. As constantes mudanças nos factos e nos protagonistas das novelas políticas não alteram o inconveniente essencial do sistema, onde o genuíno problema encontra-se inseparável da condição que o capitalismo impõe ao estado que é a proteção de “um sistema de propriedade privada descentralizado” (Harvey, 2017, p. 54) e viciado.
Os recentes acontecimentos denunciam o que há um ano, quando caiu o governo de António Costa, já era palpável. Existe uma relação tóxica entre o Estado e os interesses privados dos nossos governantes, e esta relação não é casualidade, é um sintoma crónico. A prática é comum ao Estado burguês e prejudica-nos a todos, mas perdura desde sempre e é enfatizada e acalorada pelas vantagens permissivas das maiorias parlamentares asseguradas pelo PS e pelo PSD.
Neste último ano, a maioria parlamentar da direita, mesmo não sendo absoluta, não impediu que ocorressem fenómenos que misturam no mesmo tacho os interesses particulares de uns com as necessidades urgentes da maioria. Foi o PS que segurou este governo e foi o PS que deu continuidade a uma das mais tangíveis contradições do sistema capitalista. Sistema este que não deseja o fim do Estado, mas que subsiste por meio dele.
Harvey (2017, p. 55), em “17 contradições e o fim do capitalismo”, reportava como o monopólio da violência do Estado nem sempre era evidente. Cultivou-se um embuste aclamado de democracia que encontra “uma maneira de governar populações diversas, muitas vezes rebeldes e indóceis” através da institucionalização “de procedimentos e mecanismos democráticos de governamentalidade, com o intuito de provocar um consenso em vez de recorrer à coerção e à força” (Idem). Isto é precisamente o que acontece em Portugal, onde os vícios do poder são quase inquebráveis pelo meio institucional porque essas instituições estão domesticadas pelos interesses privados e em benefício dos grandes grupos económicos.
É, por essa razão, um desejo insaciável dos interesses privados que o Estado, nas mãos do PSD/CDS e do PS, acaricie as suas vontades e cultive o seu já elevado estatuto altivo e ganancioso, sustentado por essas maiorias parlamentares à sua disposição. E quando estes falharem, ou a sua ação já não for suficiente, é altura de acionar o botão de emergência que, em Portugal, surge na imagem do CHEGA.
É também uma tendência das instituições burguesas a idolatração da chico-espertice que transforma muitos destes políticos, numa espécie de Bons Malandros que fazem estes malabarismos como método de sobrevivência. São sempre justificações bacocas que utilizam quando desvendadas suas as malandrices. Quando apanhados, fazem das tripas coração para justificar como coincidência aquilo que é uma manifestação endémica do sistema.
Foi o que fez o primeiro-ministro Luís Montenegro quando descoberto o alegado conflito de interesses na governação. Numa triste declaração ao país em horário nobre falou dos filhos, falou das finanças familiares e sempre desviou a conversa do real problema. O primeiro-ministro em funções, esteve até há bem pouco tempo a receber avenças de uma empresa privada que trabalha num dos setores da economia regulado pelo estado, os jogos de apostas.
A cultura do estado burguês para enfeitar as suas contradições sistémicas cria nestes atores políticos as figuras de Bons Malandros e as suas ações de serviçais dos interesses privados dentro do estado de pouco interferem. Aliás, não são assim tão raras as vezes que governantes acusados de corrupção regressam ao poder.
O governo, volta a cair por suspeições de conflito de interesses. São tantos os casos da nossa história recente que é normal que as pessoas fiquem desacreditadas das instituições, tal como é normal que o povo acredite que o problema é somente das pessoas que as governam. No entanto, os fins para que servem essas instituições não mudam, mesmo que se alterem as personagens, já que o estado “representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado” (Engles, 1884) e “não o há reforma burguesa que resista”[1]. No final de contas são todos crónicos Bons Malandros ao serviço dos interesses privados, e o povo que se lixe.
[1] Alerta. GAC – Vozes na Luta. Alerta. In: A Cantiga é uma Arma. 1975.