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Com o desenlace de mais de duas décadas de negociações entre a União Europeia e o Mercosul, foi anunciado o maior acordo de livre comércio já estabelecido entre estes dois blocos. Não obstante a sua grandeza, as implicações deste acordo vão além dos possíveis resultados imediatos, uma vez que este dará continuidade às dinâmicas assimétricas entre as economias do centro, representadas pela UE, e pelas economias periféricas, como as dos países do Mercosul. Caso o acordo venha a ser implementado – e tudo indica que sim, este poderá criar impactos económicos, sociais e ambientais, para além de reforçar a divisão internacional do trabalho que perpetua as desigualdades globais entre o norte cada vez mais capacitado para concentrar riqueza e um sul global territorial e socialmente cada vez mais explorado.
Uma vez que as economias do centro (UE) detêm o controlo sobre os fluxos globais de capital e tecnologia, enquanto as economias periféricas permanecem dependentes da exportação de produtos primários, é evidente que o acordo entre a UE e o Mercosul exemplifica e estimula essa relação desigual[1]. Afinal, a abertura dos mercados do espaço Mercosul para os bens industriais europeus reforça a posição dominante da União Europeia no mercado global, o que poderá limitar o desenvolvimento de indústrias locais nos países latino-americanos. Esta situação fará com que os países do Mercosul enfrentem o desafio acrescido de competir com os produtos industrializados que chegam com custos reduzidos após a eliminação de tarifas. Tal poderá levar à consolidação de um modelo que perpetua a dependência da exportação de matérias-primas e que incentiva a subordinação estrutural das economias periféricas às dos países do centro.
Do ponto de vista histórico, as economias periféricas foram incentivadas a especializarem-se na produção e exportação de commodities, sendo que este modelo reforça a dependência económica da periferia em relação ao centro e limita a diversificação produtiva. Este novo acordo entre a UE e o Mercosul deverá seguir essa mesma lógica, ao impulsionar a exportação de produtos agrícolas do Mercosul para a UE, com promessas de um acesso a um mercado europeu mais amplo, sendo que essa dinâmica beneficia de forma desproporcional os grandes exportadores e multinacionais.
Aliás, dentro da própria UE os pequenos agricultores também sairão prejudicados pelo acordo, na medida em que a eliminação de tarifas permitirá que os produtos agrícolas entrem no mercado europeu a preços mais reduzidos que aos produzidos internamente, pressionando os agricultores locais que enfrentam custos mais elevados e exigências ambientais mais rigorosas[2]. Denota-se, desta forma, que este acordo prioriza interesses corporativos em detrimento da sobrevivência dos agricultores e da coesão social na Europa. José Manuel Fernandes, Ministro da Agricultura português, referiu que o objetivo do acordo é criar uma situação win-win, em que nenhum dos lados fique a perder. No entanto, a prática mostra-nos que estes tipos de vitórias se fazem à custa da precarização das condições de trabalho e de impactos nocivos para o meio ambiente. A Alemanha, que passa por momentos de inquietude interna e cujo setor da indústria automóvel se encontra muito interessado em expandir a sua atividade para o mercado sul-americano, constitui um dos principais países interessados no acordo[3], ao passo que países europeus como a França e Polónia já se manifestaram contrariamente ao avanço do novo acordo, alegando que o seu setor agrícola saíria fortemente prejudicado[4].
Relativamente ao combate à catástrofe climática, o novo acordo UE-Mercosul não aparenta responder de forma eficaz às necessidades atuais e desafios do futuro. Na verdade, os impactos ambientais deste acordo refletem outra dimensão das relações centro-periferia – o aumento da pressão sobre ecossistemas vulneráveis, como é o caso da Amazónia e do Cerrado brasileiro, para satisfazer a crescente procura europeia, poderá provocar o desmatamento, a perda de biodiversidade e o aumento de emissões de CO2. Os custos ambientais incidirão sobre os países periféricos, enquanto os benefícios económicos do comércio permanecerão concentrados na UE. Embora a Comissão Europeia diga que o novo acordo inclui compromissos com o desenvolvimento sustentável, área que tinha sido alvo de objeções aquando do debate acerca da última versão deste acordo, estes serão previsivelmente insuficientes para mitigar os impactos negativos de um modelo económico que se baseia na exploração intensiva de recursos naturais.
Um acordo cujas negociações decorreram de forma opaca e sem oportunidade de debate público aprofundado e que aparenta ter sido promovido a pedido das multinacionais para facilitar a exploração global de recursos naturais e do trabalho humano, visando ganhos financeiros restritos para uma minoria, não representa um avanço positivo para a generalidade das pessoas. Este representa mais do que uma oportunidade de expansão comercial – ele cristaliza uma lógica de exploração e desigualdade que perpetua as dinâmicas assimétricas entre o centro e a periferia no sistema global. Embora o discurso oficial da UE enfatize benefícios mútuos, os ganhos tendem a concentrar-se nas economias do centro, enquanto os custos económicos, sociais e ambientais recairão nos países sul-americanos.
[1]Bolzani, Isabel. 2024. Acordo entre Mercosul e UE: entenda o que está em jogo e quais seriam os efeitos para o Brasil. G1, 6 de dezembro de 2024. https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/12/06/acordo-entre-mercosul-e-ue-entenda-o-que-esta-em-jogo-e-quais-seriam-os-efeitos-para-o-brasil.ghtml#4
[2]Corlyn, Peggy. 2024. Mercosul: o que há de novo e o que se segue no acordo? Euronews, 9 de dezembro de 2024. https://pt.euronews.com/my-europe/2024/12/09/mercosul-o-que-ha-de-novo-e-o-que-se-segue-no-acordo
[3]AFP. 2024. Acordo UE-Mercosul: Alemanha faz novos gestos para defender acordo, e França tenta barrar. Exame, 21 de novembro de 2024. https://exame.com/mundo/alemanha-e-franca-buscam-aliados-para-acordo-ue-mercosul/
[4]Lusa. 2024. Polónia “não aceitará” acordo UE-Mercosul na sua forma atual. Observador, 26 de novembro de 2024. https://observador.pt/2024/11/26/polonia-nao-aceitara-acordo-ue-mercosul-na-sua-forma-atual/